Caso Burger King: o que muda em relação aos lastros de CRA e CRI?

Em decisão do final do mês de agosto, o colegiado da CVM aprovou o registro da oferta de certificados de recebíveis do agronegócio (CRA) de emissão da Eco Securitizadora, no valor total de R$150 milhões. De um lado, referida decisão consolida o entendimento de que a destinação dos recursos captados para o segmento do agronegócio pode ser fundamento suficiente para que determinado crédito seja lastro de operações de CRA. De outro, abre portas para se rediscutir a utilização de lastro equivalente em operações de certificados de recebíveis imobiliários (CRI).

Na decisão do colegiado, analisou-se a possibilidade de enquadramento do lastro dos CRA – representado por debêntures emitidas pela operadora dos restaurantes da marca “Burger King” no Brasil, para financiar a aquisição de carne in natura produzida e comercializada pela JBS e pela Seara – como direitos creditórios do agronegócio, para fins do artigo 23, §1º, da Lei nº 11.076/04[1].

Essa não foi a primeira vez que a CVM se deparou com a questão da admissibilidade de lastro de operações tipicamente vinculadas a segmentos específicos – como o do agronegócio e o imobiliário – com fundamento exclusivo na destinação dos recursos captados. Em 2003, a CVM indeferiu o registro de CRI lastreados em recebíveis oriundos da comercialização de energia elétrica pela Companhia Energética Paulista – EP. Embora, nesse caso, os recursos captados com a oferta fossem destinados à ampliação e à reforma de central hidrelétrica, o colegiado da CVM entendeu que a caracterização do crédito como imobiliário decorreria de sua origem e não de sua destinação.

Já no ano de 2013, a Superintendência de Registros de Valores Mobiliários da CVM (SRE) manifestou-se favoravelmente ao registro da oferta de CRI lastreados em debêntures emitidas pela Rede D’or, para captação de recursos para a aquisição de terrenos, a edificação e a expansão de prédios hospitalares. O colegiado, no entanto, em decisão unânime, indeferiu o registro por entender que o fato de o pagamento dos CRI decorrer do fluxo de caixa de uma rede hospitalar não permitiria o enquadramento dos recebíveis como sendo de natureza imobiliária.

Em meados de agosto de 2016, dias antes da decisão sobre os CRA do Burger King, foi proferida decisão do colegiado da CVM que autorizou a distribuição pública de CRI com lastro em debêntures de emissão da Cyrela, para o financiamento de determinados empreendimentos imobiliários, junto a investidores não qualificados. Apesar de o colegiado não ter enfrentado diretamente a questão da possibilidade de se emitir CRI lastreados em crédito exclusivamente em razão da destinação dos recursos obtidos, é possível concluir, ao menos, que houve um alargamento no entendimento do que caracterizaria a origem imobiliária dos recebíveis. A SRE concluiu, com fundamento em despacho do Subprocurador-Chefe (PFE-CVM), que o fluxo de pagamento dos CRI se relacionava ao setor imobiliário em razão do objeto social da Cyrela, na qualidade de devedora final[2]. Com base nessa decisão, outras empresas atuantes no ramo imobiliário (como corretoras, consultoras imobiliárias, administradoras de imóveis, entre outras) também poderiam se beneficiar de emissões de CRI com lastro em créditos de natureza equivalente.

No julgamento dos CRA do Burger King, a concessão do registro da oferta foi condicionada à comprovação da efetiva destinação dos recursos obtidos por meio da emissão à aquisição de carne in natura pelo Burger King. O colegiado, por maioria, nos termos do voto do Diretor Presidente Leonardo Pereira, expôs seu entendimento de que, para a caracterização dos créditos como do agronegócio, bastava sua vinculação com negócios realizados entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e qualquer terceiro – nesse caso, o Burger King –, desde que relacionados a uma ou mais etapas do processo de produção rural, não se restringindo apenas ao financiamento direto dos produtores rurais. Embora outras emissões de CRA, com estruturas semelhantes à utilizada pelo Burger King, tenham sido aprovadas pela CVM, esse foi o primeiro posicionamento formal do colegiado no qual se admite a destinação dos recursos captados como fundamento para que um crédito seja lastro de CRA.

Há muitas semelhanças entre CRA e CRI. Ambos são vinculados a operações de securitização e concebidos com o objetivo de direcionar recursos captados no âmbito do mercado de capitais a setores específicos da economia. O rendimento e o ganho de capital relacionados aos dois valores mobiliários são isentos de imposto de renda para pessoas físicas. A própria CVM, inclusive, dentro de sua função reguladora, aplica a mesma Instrução nº 414/04 para os dois títulos (ainda que o faça de maneira supletiva e temporária no tocante aos CRA).

Diante do contexto acima, é surpreendente o fato de a CVM permitir que a destinação dos recursos seja critério suficiente para que determinado crédito seja lastro de CRA, e não adotar o mesmo critério para os CRI.

A Lei nº 11.076/04 define o que seriam os “direitos creditórios do agronegócio”. A Lei nº 9.514/97, por outro lado, não traz qualquer definição de “crédito imobiliário”. A ausência de previsão legal, intuitivamente, levaria à conclusão de que a caracterização da natureza imobiliária do lastro dos CRI permitiria enquadramento mais flexível. Como visto, não é o que se verifica atualmente.

O caso do Burger King deve abrir portas para outras emissões de CRA com estruturas análogas. Adicionalmente, para que seja conferido tratamento equitativo entre valores mobiliários de natureza tão semelhante, como os CRI e os CRA, tal decisão também deveria levar à revisão do posicionamento do colegiado da CVM, de forma clara e expressa, no sentido de admitir a destinação dos recursos para o segmento imobiliário como fundamento suficiente para que créditos sejam lastro dos CRI.

[1]§1º Os títulos de crédito de que trata este artigo são vinculados a direitos creditórios originários de negócios realizados entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, inclusive financiamentos ou empréstimos, relacionados com a produção, a comercialização, o beneficiamento ou a industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária.

[2] Conforme disposto em seu estatuto, o objeto social da Cyrela compreende “a incorporação, a compra e a venda de imóveis comerciais e industriais (inclusive híbridos), prontos ou a construir, de terrenos e frações ideais, e/ou a participação em ativos imobiliários, a locação e administração de bens imóveis, a construção de imóveis e a prestação de serviços de consultoria em assuntos relativos ao mercado imobiliário”.

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