Costuma causar controvérsia a responsabilidade de ex-sócio pela sociedade em que participou, passando-se a impressão de que os sócios deveriam, em tese, ser responsabilizados por dívidas da própria sociedade. No entanto, por meio da constituição de uma sociedade empresária, com limitação de responsabilidade, o empresário pode separar parte específica de seu patrimônio, alocando-o à pessoa jurídica, sem que se ponha em risco seu patrimônio pessoal, independentemente de eventual insucesso do investimento – sendo a única possível e excepcional ressalva a tal regra eventual desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, relativamente a evento ocorrido durante a permanência do empresário no quadro societário.
Nesse cenário, o empresário é, a princípio, única e exclusivamente responsável pelo capital que se comprometeu a integralizar na sociedade, sendo que, ainda que aliene toda sua participação, permanece responsável, solidariamente com o adquirente de tais ações/quotas, por eventual capital a integralizar – observado que, em sociedades limitadas, em específico, todos os sócios são solidariamente responsáveis pelo capital não integralizado. Tal responsabilidade, nos termos do parágrafo único do art. 1.003 do Código Civil[1] e do art. 108 da Lei das S.A.[2], estende-se por um período de dois anos a contar da efetivação da transferência de participação em questão, i.e., do registro da operação nos livros societários, no caso de uma companhia, ou da averbação da alteração de contrato social correspondente, no caso de uma sociedade limitada.
O entendimento consolidado do STJ sobre o assunto é justamente nesse sentido[3]. De acordo com a referida corte, a expressão “obrigações que tinha como sócio” compreenderia, tão somente, aquelas que foram constituídas ou causadas enquanto o empresário ainda integrava a sociedade. Adicionalmente, o TJ-SP[4] também consolidou o entendimento de que, em sociedades anônimas e limitadas, a responsabilidade de um ex-sócio compreenderia, a princípio, apenas seu dever de integralização do capital social, exigível durante o período dois anos contados da saída, dada a limitação de responsabilidade ao capital subscrito que rege tais tipos societários.
A extensão de tal responsabilidade do ex-sócio somente pode ocorrer em situações de caráter excepcional, se instaurada, em sede judicial ou arbitral, incidente de desconsideração da personalidade jurídica relativo a evento ocorrido enquanto o empresário ainda detinha participação na sociedade de que saiu.
Conforme o Código Civil[5], a personalidade jurídica de uma sociedade pode ser desconsiderada em caso de comprovado abuso na condução da sociedade por parte do empresário, por meio de (a) confusão patrimonial e/ou (b) de desvio de finalidade, caracterizada pela utilização da pessoa jurídica com a finalidade de lesar credores e/ou de praticar atos ilícitos. Nesses casos de caráter excepcional, podem os sócios ter seu patrimônio pessoal afetado – mediante decisão judicial/arbitral – em relação a obrigações específicas, atingindo-se apenas o patrimônio pessoal do(s) sócio(s) que tenham cometido comprovado abuso, sem aplicação da limitação temporal de dois anos, conforme entende o STJ[6].
Tal aspecto excepcional da desconsideração da personalidade jurídica – restrito a hipóteses de abuso – é, no entanto, objeto de controversa relativização, em outras searas jurídicas – i.e., ambiental[7], consumerista[8] e trabalhista[9]. Nessas esferas, a legislação aplicável prevê, em dissonância com o disposto no Código Civil, que a personalidade jurídica pode ser desconsiderada independentemente de demonstração de abuso, bastando a insuficiência do patrimônio da sociedade para satisfação das dívidas. Adicionalmente, o artigo 10-A da CLT[10] torna possível que ex-sócios sejam responsabilizados, em ações ajuizadas até dois anos após a efetivação de sua saída, por obrigações trabalhistas relativas ao período em que participaram da sociedade. De todo modo, tal responsabilidade é subsidiária em relação à própria sociedade e seus sócios remanescentes, que têm seu patrimônio pessoal executado antes do ex-sócio.
Assim sendo, é possível que um empresário seja, em situações excepcionais, responsabilizado por dívidas contraídas pela sociedade em que deteve participação e que tenham sido, em sede judicial ou arbitral, objeto de desconsideração da personalidade jurídica especificamente direcionada a tal ex-sócio. Não havendo a instauração de tal incidente processual, a responsabilidade de um ex-sócio limita-se à integralização do capital social, exigível no prazo limite de dois anos contados do registro de tal transferência nos livros societários ou da alteração de contrato social que aprovar sua saída. Estas são, invariavelmente, as regras que se aplicam em relação à responsabilidade de um ex-sócio, caso não sejam negociadas, contratualmente, condições mais específicas nos documentos de sua saída. A redação de disposições pensadas para cada caso se mostra, nesse sentido, em boa medida, relevante, sobretudo para garantir maior previsibilidade às partes envolvidas, conciliando seus interesses potencialmente contrastantes nesse momento – de redução de responsabilidades do sócio que se retira, e de uma busca por um maior amparo, por parte dos remanescentes.
[1] Art. 1.003, parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.
[2] Art. 108. Ainda quando negociadas as ações, os alienantes continuarão responsáveis, solidariamente com os adquirentes, pelo pagamento das prestações que faltarem para integralizar as ações transferidas.
Parágrafo único. Tal responsabilidade cessará, em relação a cada alienante, no fim de 2 (dois) anos a contar da data da transferência das ações.
[3] STJ – REsp: 1537521 RJ 2015/0062165-9, Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 5/2/2019, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: Dje 12/2/2019)
[4] TJSP – Apelação 1002165-48.2016.8.26.0032, 34ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, julgado em 27 mar. 2019, publicado em 28 mar. 2019
[5] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
[6] STJ, REsp 1.312.591/RS, Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Data de Julgamento: 11/6/2013, T3 – Quarta Turma, Data de Publicação: Dje 1/7/2013.
[7] Art. 4º (lei 9.605) Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
[8] Art. 28, § 5º (CDC)Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
[9] Com fundamento no art. 8º da CLT, os tribunais da justiça do trabalho reproduzem o artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor, determinando a execução do patrimônio dos sócios sempre que não satisfeito o débito trabalhista por meio do patrimônio da própria empresa.
[10] Art. 10-A. (CLT) O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência: I – a empresa devedora; II – os sócios atuais; III – os sócios retirantes.
Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato.