Potenciais alterações relevantes à Lei das S.A. e ao private enforcement no Mercado de Capitais

O Projeto de Lei nº 2925/2023[1] (“PL”) proposto pelo Ministério da Fazenda chega ao Congresso Nacional com uma série de proposições que podem resultar na alteração mais relevante da legislação societária nas últimas décadas. Para tanto, o PL propõe uma série de modificações na Lei nº 6.385/1976, responsável pela criação e definição de atribuições da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), bem como na Lei nº 6.404/1976 (“Lei das S.A.”).

Neste sentido, o PL, que é largamente baseado em estudos conduzidos por um grupo de trabalho conjunto entre a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a CVM[2], busca, em termos gerais, (a) reforçar os mecanismos de tutela privada (private enforcement) de investidores atuantes no mercado de capitais brasileiros; (b) ampliar as competências e capacidade da CVM como ente fiscalizador do mercado; e (c) ajustar pontualmente a governança de sociedades anônimas. Assim, a lógica subjacente do PL é aproximar o arcabouço legal societário brasileiro ao de jurisdições mais consolidadas, visando gerar maior segurança e estabilidade ao mercado de capitais, especialmente por meio da otimização da defesa dos interesses dos investidores.

(a) Fortalecimento da tutela privada dos investidores

O primeiro e mais extenso grupo de alterações mencionado acima, diz respeito ao fortalecimento da tutela privada, i.e., a capacidade de os investidores[3] de entidades emissoras de valores mobiliários buscarem reparação por danos sofridos em virtude de atos ilícitos ou irregulares praticados por administradores ou controladores dessas entidades emissoras. A premissa norteadora é que: em um sistema no qual seus participantes têm mais alternativas e incentivos para perseguirem a responsabilização e indenização por condutas impróprias, esses comportamentos tendem a se tornar menos recorrentes e gravosos.

Neste sentido, o PL tem seus principais ajustes ao private enforcement focados na legitimação de investidores para proporem, caso uma emissora de valores mobiliários não faça na forma da lei, ações de responsabilidade e reparação de danos não apenas em seu nome, mas também no interesse de outros investidores lesados[4][5]. Dessa forma, por meio dessa legitimação extraordinária, o PL almeja facilitar a proteção dos direitos coletivos de investidores afetados, permitindo que administradores e controladores que tenham cometido atos ilícitos sejam responsabilizados pela integridade do dano em detrimento de responderem a ações isoladas ajuizadas por investidores individuais.

Além disso, outra novidade relevante sugerida pelo PL é a possibilidade de investidores que ingressarem com uma ação de responsabilidade, pleitearem, além da reparação dos danos, a fixação de um prêmio que deverá ser pago pelos administradores ou controladores que venham a ser condenados nesses litígios[6]. O prêmio, que poderá ser de até 20% do total da indenização devida, funciona simultaneamente como um incentivo para que os investidores busquem a responsabilização dos administradores e controladores, bem como um inibidor para que esses agentes obedeçam a seus deveres e as normas aplicáveis.

Ainda sobre a tutela privada, outra proposta do PL é a publicização de decisões de processos arbitrais, individuais ou coletivos, que tenham como objeto a responsabilização em virtude de infrações da legislação ou da regulamentação do mercado de capitais. Essa modificação é relevante na medida em que a arbitragem é um dos meios de resolução de conflitos mais adotado pelos participantes do mercado de capitais e tem como regra o sigilo de suas decisões, o que impede a consolidação de uma jurisprudência para que outros litígios utilizem como fundamento. A publicidade dos procedimentos arbitrais deverá proporcionar maior transparência, previsibilidade e uniformidade às disputas entre integrantes do mercado de capitais e, como consequência, tende a reforçar a confiança dos investidores no sistema legal brasileiro.

(b) Ampliação da competência da CVM como fiscalizador de mercado

Já o segundo conjunto de alterações mencionado anteriormente preconiza o reforço da atuação pré-sancionadora da CVM, ou seja, em investigações e diligências anteriores a instauração de processos administrativos. O PL pretende que sejam incluídas no rol de ferramentas da CVM, competências como: (i) a realização de inspeções em estabelecimento empresariais, assim como em objetos lá presentes, como computadores e documentos; (ii) requerer cópias e informações de processos, judiciais ou administrativos e inquérito policiais; e (iii) compartilhar com autoridades fiscais acesso de informações sigilosas, sem prejuízo da manutenção da confidencialidade pelas autoridades que receberem os dados.

De maneira geral, a adição dessas competências ao repertório da CVM busca aproximar o órgão de outras autoridades que têm suas organizações reguladas por leis mais novas e que, por conseguinte, já gozam dessas prerrogativas, como é o caso do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Vale notar que o alargamento das capacidades da CVM se encaixa em um contexto e anseio mais amplo de empoderar a CVM, que, apesar do crescimento e consolidação do mercado de capitais brasileiro, não teve sua estrutura e ferramentas atualizadas durante os últimos anos.

(c) Ajuste na governança das sociedades anônimas

O terceiro e último conjunto de alterações mencionado na introdução está restrito a modificações na Lei das S.A. em dois temas de relevância. O primeiro é a exclusão da exoneração de responsabilidade automática dos administradores em caso de aprovação sem ressalvas das demonstrações financeiras, conforme prevê o vigente art. 134, §3º da Lei das S.A.[7] Com isso, o PL busca trazer maior consciência e intenção ao ato de outorga de quitação aos administradores na aprovação de contas, retirando a sua “presunção” e fazendo que os acionistas que desejem praticar este ato deliberem especificamente neste sentido.

O segundo tópico é a alteração do artigo 122 da Lei das S.A. para inclusão de matérias de competência exclusiva da assembleia geral de sociedades, quais sejam:

  • deliberar, quando se tratar de companhias abertas, sobre a celebração de transações com partes relacionadas, a alienação ou a contribuição para outra empresa de ativos, caso o valor da operação corresponda a percentual superior a cinquenta por cento do valor dos ativos totais da companhia constantes do último balanço aprovado; e
  • autorizar transação que vise a encerrar as ações de responsabilidade de acionista controlador e também contra os administradores (a qual não produzirá efeitos caso acionistas representando 10% do capital votante decidam pela sua rejeição).

Ante todo o exposto, nos parece que o PL atende a antigas aspirações de reforma dos agentes do mercado de capitais, assim como revigora o papel da CVM como fiscal desse sistema. Continuaremos a acompanhar a tramitação do PL e suas eventuais modificações durante o processo legislativo.

 

 

 

[1] Detalhes em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2367421

[2] Disponível em: www.oecd.org/corporate/ca/Shareholder-Rights-Brazil.pdf

[3] Vale notar que o PL utiliza o termo “investidores”, implicando que não apenas acionistas ou sócios de uma emissora de valores mobiliários possam buscar reparação de danos, mas qualquer interessado que possa ser caracterizado como investidor, incluindo muito provavelmente, debenturistas, detentores de mútuos conversíveis, etc.

[4] Sem prejuízo da proposição de ações individuais ou a intervenção na ação coletiva por esses outros investidores lesados.

[5] A dinâmica de proteção de direitos coletivos já é consagrada no direito brasileiro no âmbito de demandas consumeristas, nas quais um consumidor lesado que faça parte de um grupo mais extenso pode ingressar em juízo para reparação dos danos sofridos por todos os consumidores prejudicados, na forma da legislação processual.

[6] Vale ressaltar a lógica da fixação de um prêmio em caso de condenação já é previsto pelo art. 246 da  Lei das S.A., conforme vigente. Entretanto o prêmio na redação atual é limitado a apenas 5% do valor da indenização e é devido apenas em ações de responsabilização de controladores, mas não administradores.

[7] Art. 134. Instalada a assembleia-geral, proceder-se-á, se requerida por qualquer acionista, à leitura dos documentos referidos no artigo 133 e do parecer do conselho fiscal, se houver, os quais serão submetidos pela mesa à discussão e votação. (…)
§3º A aprovação, sem reserva, das demonstrações financeiras e das contas, exonera de responsabilidade os administradores e fiscais, salvo erro, dolo, fraude ou simulação (artigo 286).

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