O usufruto de ações e o exercício de direitos políticos: análise de precedente da CVM

Em decisão recente, o Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”)[1] buscou apurar a responsabilidade de acionistas e administradores da GPC Participações S.A. – Em Recuperação Judicial (“Companhia”), entre outras questões, pelo exercício irregular do seu direito de voto em assembleia geral ordinária e extraordinária – AGOE que deliberou a aprovação das demonstrações financeiras e contas da administração referentes ao exercício social de 2015, em desconformidade com os artigos 115, §1º e 134, §1º da Lei nº 6.404/76 (“Lei das S.A.”).

Referidos artigos proíbem, por conflito de interesse, que acionistas votem em deliberações sobre a aprovação de demonstrações financeiras ou contas da administração referentes a períodos em que tenham sido administradores. Todavia, neste caso específico, os votos com as ações de titularidade dos acionistas administradores foram computados na AGOE, e foram determinantes para que as demonstrações financeiras e contas da administração fossem aprovadas.

Em sua defesa, os acionistas administradores apresentaram, em suma, dois principais argumentos: (a) que o exercício do direito de voto teria sido “forçado” em decorrência de disposição específica prevista em acordo de acionistas, cumulado com a disposição do §9 do artigo 118 da Lei das S.A.[2], e (b) que, uma vez que suas ações haviam sido gravadas com usufruto em benefício de terceiros, o exercício do direito de voto por tais terceiros (não administradores) não estaria sujeito às restrições legais previstas na Lei das S.A.

De fato, os acionistas administradores integravam grupo de acionistas cujas relações eram reguladas por acordo que previa a realização de uma reunião prévia para alinhamento de deliberações a serem tomadas em assembleias gerais, com a obrigação de que todos os acionistas a ele aderentes votassem, de forma uniforme, conforme nelas acordado. Tendo a reunião prévia decidido pela aprovação das demonstrações financeiras e contas da administração (sem a participação dos acionistas conflitados, uma vez que o próprio acordo de acionistas já reconhecia a impossibilidade de exercício de voto em caso de conflito), o voto do “bloco” na AGOE deveria ser pela aprovação.

Nesse sentido, o §9 do artigo 118 da Lei das S.A. autorizaria os demais integrantes do acordo a votarem com as ações dos acionistas impedidos, que não participaram da reunião prévia nem participariam da AGOE. No entanto, o Colegiado reiterou o entendimento pacífico da CVM de que a existência de acordo de acionista ou acordo de voto não é suficiente para afastar o impedimento legal previsto na Lei das S.A.

A discussão mais interessante ficou reservada à análise do segundo argumento da defesa: como interpretar as restrições legais na hipótese em que o direito de voto atribuível às ações não é exercido pelo acionista impedido, mas por terceiro?

No caso em tela, os acionistas administradores haviam constituído usufruto sobre suas ações em benefício de terceiros, instituto no qual o titular das ações (chamado nu-proprietário) transfere os direitos atribuíveis às ações a terceiro (chamado usufrutuário). Nessa hipótese, poderia o usufrutuário exercer o direito de voto correspondente a tais ações?

A defesa argumentou que o impedimento de voto previsto na Lei das S.A. seria restrição personalíssima, recaindo, no caso concreto, somente sobre os nu-proprietários (i.e., os acionistas administradores), não alcançando os usufrutuários (i.e., os terceiros), por gozarem de independência em relação aos nu-proprietários e por não estarem envolvidos com a administração da sociedade.

Embora todos os Diretores julgadores tenham votado pela impossibilidade do exercício de voto no caso concreto e pela consequente condenação dos acionistas administradores, o Diretor Relator Henrique Machado fê-lo por entender que o impedimento originado na situação de conflito de interesses do nu-proprietário é indissociável das ações, em qualquer hipótese – ou seja, será sempre oponível ao usufrutuário.

Já o Diretor Presidente Marcelo Barbosa e a Diretora Flavia Sant’Anna Perlingeiro entenderam que a determinação de impedimento do usufrutuário não poderia ser tomada sem uma análise casuística, conforme os fatos e eventos específicos, caso a caso. Em outras palavras, na hipótese em que o caso concreto apresente elementos suficientes para determinar que o usufrutuário não se encontra na mesma situação de conflito de interesse que o nu-proprietário, os direitos de voto poderiam ser regularmente exercidos.

No presente caso, no entanto, ambos os Diretores entenderam haver elementos fáticos suficientes para entender que os usufrutos foram constituídos para “burlar as disposições legais que impunham o impedimento de voto dos Acusados” e, portanto, estender o impedimento aos usufrutuários.

Conforme identificados no âmbito do processo administrativo, destacamos, entre outros: a iminência e previsibilidade de conflito societário entre o grupo de acionistas do qual os acionistas administradores faziam parte e demais acionistas; a constituição do usufruto a título gratuito e por prazo indeterminado (o que poderia afastar a imparcialidade e independência do usufrutuário em relação ao nu-proprietário); e o fato de os acionistas administradores terem exercido, diretamente, direito de voto em assembleias gerais anteriores, nas quais, pela força do instrumento de usufruto, o direito de voto já era dos usufrutuários.

Finalmente, destacamos que o Colegiado discorreu também, por vezes de forma inédita, sobre diversos aspectos relevantes à constituição de usufruto, especialmente no que diz respeito ao exercício dos direitos políticos das ações, de modo que a decisão deve servir como importante parâmetro para os participantes do mercado.

Entre outros, entende o Colegiado que, uma vez realizada a transferência de direitos políticos (i.e., dando ao usufrutuário do direito de votar com as ações), a transferência deverá englobar também, sob risco de nulidade do instituto, os direitos patrimoniais relacionados à titularidade de ações – já que o objetivo da transferência de direitos políticos é justamente o aproveitamento dos direitos patrimoniais (isto é, a participação no resultado da companhia).

Outro tal aspecto é a importância de que o instrumento de constituição descreva, de forma precisa, como se dará o direito de voto das ações gravadas com usufruto. Especialmente nos casos em que a independência entre usufrutuário e nu-proprietário seja relevante, inclusive para defender que impedimentos oponíveis ao nu-proprietário não o sejam ao usufrutuário – tal detalhamento pode ser crucial para a defesa da legitimidade do exercício do voto, uma vez que o artigo 114 da Lei das S.A.[3] prevê que, em sua ausência, é necessário acordo prévio entre as partes sobre o teor do voto (afastando, naturalmente, qualquer independência entre as partes).

[1]                Em reunião de 23 de junho de 2020, no âmbito do Processo Administrativo Sancionador nº RJ2017/1158, instaurado pela Superintendência de Relações com Empresas – SEP.

[2]                “Art. 118 (…) § 9o O não comparecimento à assembleia ou às reuniões dos órgãos de administração da companhia, bem como as abstenções de voto de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conselho de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o direito de votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicada.”

[3]                “Art. 114. O direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato de constituição do gravame, somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.”

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