A importância dos FIDC como fonte de recursos para empresas em recuperação judicial e o recente posicionamento da CVM

Há diversas razões para a ausência de interesse no financiamento direto de empresas em recuperação judicial. O baixo histórico de efetiva recuperação das empresas é provavelmente um dos motivos para haver restrições ao crédito. Não há, afinal, incentivos econômicos para emprestar recursos para empresas que apresentam alta probabilidade de ter suas atividades interrompidas e, com isso, tornarem-se incapazes de honrar com seus débitos.

Por outro lado, a securitização, em linhas gerais, permite que a empresa ceda definitiva e onerosamente, a uma taxa de desconto, recebíveis a um veículo securitizador. Esse veículo, por sua vez, obtém recursos para aquisição dos créditos por meio da emissão de valores mobiliários, que serão remunerados exclusivamente com base no recebimento dos pagamentos dos créditos adquiridos.

Assim, diferentemente do financiamento direto, a securitização não impõe ao financiador (no caso, o veículo securitizador) o risco da empresa em recuperação judicial, mas sim e somente dos devedores dos créditos que foram por ele adquiridos. Portanto, se houver a interrupção das atividades da empresa em recuperação judicial, em tese, o financiador não seria afetado.

Tanto pela diversidade de operações que permitem realizar, como pelo estágio de desenvolvimento das normas que lhes são aplicáveis, pode-se afirmar que os fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) são o principal veículo de securitização do país¹.

Há, na regulamentação em vigor, dois tipos de FIDC, os padronizados e os não padronizados (FIDC-NP)2. A principal diferença entre eles está na natureza dos direitos creditórios que podem adquirir. São FIDC-NP os FIDC que invistam em direitos creditórios que se enquadrem na descrição de qualquer dos incisos do Parágrafo 1º, do Artigo 1º da Instrução CVM nº 444/06, que incluem aqueles “originados de empresas em recuperação judicial ou extrajudicial”3 .

Havia uma dúvida no mercado sobre se a definição acima significaria cedidos e/ou devidos por empresas em recuperação judicial. Recentemente, porém, o colegiado da CVM4 esclareceu que devem ser considerados passíveis de aquisição apenas por FIDC-NP os direitos creditórios devidos por empresas em recuperação judicial (Decisão CVM). Com isso, abriu-se a possibilidade para que FIDC padronizados também adquiram direitos creditórios cedidos por empresas em recuperação judicial.

Essa decisão tem especial importância se considerarmos que não somente o patrimônio dos FIDC padronizados é consideravelmente maior do que o patrimônio dos FIDC-NP5 , como o potencial de crescimento daqueles é consideravelmente maior que o destes. Isso porque há uma série de restrições ao investimento em cotas de FIDC-NP que não se verifica em relação aos FIDC padronizados6.

Contudo, a Decisão CVM não permitiu de forma irrestrita o investimento por FIDC padronizados em créditos cedidos por empresas em recuperação, pois vedou a aquisição por esses fundos de créditos (a) em que haja coobrigação de tais empresas ou (b) de cedentes cujo plano de recuperação não tenha sido homologado judicialmente, por decisão transitada em julgado.

Tais restrições não se justificam diante da lógica de segregação de riscos inerente a qualquer operação de securitização, bem como ao regramento da Lei nº 11.101/05 (LRE).

No primeiro caso, vedar-se aos FIDC padronizados adquirir créditos em que empresa em recuperação figure como coobrigada não parece razoável. De acordo com a legislação brasileira, a coobrigação, para fins de mitigação de risco de crédito, pode ser positiva ou neutra, mas jamais negativa. Um crédito que tenha um devedor com baixo risco de crédito não teria o seu risco majorado caso passasse a contar com a fiança de um terceiro, mesmo que tal terceiro fosse um devedor contumaz. Da mesma forma, não parece fazer sentido que um FIDC padronizado possa adquirir determinado crédito que não tenha qualquer garantia, mas que, a partir do momento que esse mesmo crédito passe a contar com a fiança de uma empresa em recuperação judicial, essa aquisição lhe seja vedada.

De forma similar, a segunda hipótese de restrição imposta pela CVM parece não se sustentar diante de uma análise mais aprofundada. A homologação judicial do plano de recuperação ou o seu trânsito em julgado não implica diminuição de risco à cessão de créditos pela empresa em recuperação, de modo que inexiste justificativa para que empresas fora dessas hipóteses não possam operar com FIDC padronizados.

O risco relacionado à validade da operação de cessão de crédito por empresas em recuperação judicial é igual ao de qualquer outra empresa. Isso porque a LRE permite que empresas requerentes da recuperação judicial continuem suas operações normalmente, estando aptas a contrair novos direitos e obrigações. A limitação mais sensível imposta a tais empresas refere-se à alienação e oneração de bens do ativo permanente7.

Portanto, observados os preceitos de transparência e publicidade da LRE, a cessão de bens do ativo circulante, tais como os direitos creditórios, é plenamente permitida durante a recuperação judicial, independendo de autorização prévia do administrador judicial, dos credores ou do juízo da recuperação.

Poder-se-ia argumentar, embora erroneamente, que no caso de convolação da recuperação judicial em falência, o ato de cessão definitiva dos direitos creditórios estaria sujeito às hipóteses de ineficácia ou nulidades previstas na LRE8, trazendo um risco adicional à operação.

Contudo, a LRE excluiu expressamente o ato de alienação de ativos para fins de securitização do âmbito de alcance da ação revocatória, que impacta a validade e eficácia do negócio jurídico. Nesse sentido, o §1º do Artigo 136 prevê que “na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão, com base em ação revocatória, em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo securitizador”.

Portanto, o ato de cessão dos ativos para fins de securitização jamais poderá ser declarado sem efeitos ou revogado, por meio de ação revocatória, em razão da convolação da recuperação judicial em falência, ainda que a cessão tenha sido celebrada no “período suspeito” ou termo legal falimentar.

Embora o Art. 136, §1º refira-se à falência, a proteção desse dispositivo estende-se, analogamente, ao processo de recuperação judicial. Se o legislador se preocupou em conferir a segurança jurídica necessária à securitização nos casos de falência, com maior razão deve-se fazê-lo nos casos de recuperação, pois a situação da empresa perante seus credores é menos gravosa. Portanto, a cessão de direitos creditórios por empresa no curso da recuperação judicial é permitida e livre e, mesmo se ocorressem questionamentos sobre a validade ou eficácia desse ato, poder-se-ia invocar a proteção do §1º do Artigo 136.

Observando a legislação vigente, bem como a realidade dos processos de recuperação, evidencia-se que a ausência de homologação do plano de recuperação, ou mesmo a inexistência do trânsito em julgado dessa decisão, não teria o potencial de tornar a cessão de recebíveis passível de questionamento.

Conclusão

A dificuldade de acesso a linhas de crédito tem sido um obstáculo significativo para que as empresas em recuperação judicial mantenham suas atividades. Nesse contexto, a securitização de recebíveis tem se mostrado uma alternativa importante e cada vez mais utilizada para se ter acesso a novos recursos.

Os FIDC são veículos de securitização por excelência e sua utilização no contexto da recuperação judicial, até recentemente, restringia-se ao âmbito dos FIDC-NP, que apresentam atualmente um patrimônio inferior, com acesso a um universo consideravelmente menor de investidores quando comparado ao dos FIDC padronizados.

Em recente decisão, o Colegiado da CVM decidiu que também FIDC padronizados poderiam investir em créditos cedidos por empresas em recuperação. Essa decisão, porém, impôs algumas restrições que, como visto, não se justificam do ponto de vista estrutural e legal, merecendo, portanto, revisão.

Tais restrições impedem que FIDC padronizados adquiram créditos que contem com coobrigação de empresas em recuperação e, ainda, créditos cedidos por essas empresas, sem que haja decisão homologatória do plano transitada em julgado.

A revisão da Decisão CVM poderá significar importante expansão das fontes de financiamento para empresas em recuperação judicial, notadamente em momento econômico em que a busca por novas fontes de recursos é ainda mais premente.

1 Há FIDC, especialmente os classificados pela ANBIMA como “FIDC Fomento Mercantil”, que já desempenham importante papel na aquisição de créditos de empresas, inclusive daquelas em recuperação judicial. Esses FIDC têm como política de investimento a aquisição de créditos de empresas, instrumentalizados em duplicatas, sem que haja identificação prévia do cedente ou do sacado. Funcionam, assim, de forma análoga às empresas de fomento mercantil.

2 Os FIDC foram primeiramente regulamentados pela Resolução nº 2.907/01, do CMN e posteriormente pela

Instrução CVM nº 356/01. Embora não haja previsão normativa expressa, costuma-se chamar de FIDC padronizado aquele que está submetido, no âmbito da CVM e no que se refere a FIDC, exclusivamente à Instrução CVM nº 356/01. Os FIDC-NP estão submetidos primeiramente à Instrução CVM nº 444/06 e subsidiariamente à Instrução CVM nº 356/01.

3 Os FIDC-NP podem adquirir créditos que, em tese, apresentam maior grau de risco e complexidade do que os passíveis de aquisição pelos FIDC padronizados.

4 Decisão proferida no âmbito dos Processos RJ2012/13.061 e RJ2014/5.041 (disponível em http://www.cvm.gov.br/decisoes/2015/20150623_R1.html).

5 De acordo com dados da ANBIMA, em dezembro de 2014 havia 289 FIDC, com um volume total de R$ 39.084.000.000,00 em patrimônio líquido, e 146 FIDC-NP, com um volume total de patrimônio líquido de R$ 12.858.000.000,74 (sem considerar o FIDC-NP do Sistema Petrobrás).
(Estudos Especiais Produtos de Captação – FIDC, 2015, disponível em http://portal.anbima.com.br/informacoes-tecnicas/estudos/produtos-de-captacao/Documents/FIDC.pdf)

6 De acordo com a regulamentação de FIDC, somente investidores profissionais podem investir nos FIDC-NP. São considerados investidores profissionais, como regra geral, as pessoas físicas ou jurídicas com investimentos financeiros em valor superior a R$ 10 milhões (Instrução CVM nº 554/14). Há, além disso, restrições específicas de investimento aplicáveis a determinados investidores institucionais, nomeadamente os regimes próprios de previdência social (RPPS) e as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC). No caso dos RPPS, há vedação normativa expressa para aplicação de recursos em FIDC-NP (Art. 23, III da Resolução CMN nº 3.922/10). No caso das EFPC, por conta de interpretação normativa adotada por parcela significativa dessas entidades, como regra geral, estas também não investem em FIDC-NP. Para se ter uma ideia do potencial de investimento dessas entidades, em agosto de 2015 a carteira de ativos das EFPC totalizou aproximadamente R$ 693 bilhões (fonte: ABRAAP) e, no mesmo ano, os RPPS possuíam patrimônio total aproximado de R$ 175 bilhões (fonte: Ministério da Previdência Social). Finalmente, fundos de investimento convencionais, regulados pela Instrução CVM nº 555/14, tais como os fundos multimercado e fundos de renda fixa podem, como regra geral, aplicar parcela significativamente maior de seu patrimônio em cotas de FIDC padronizados do que em cotas de FIDC-NP.

7 O Art. 66 da LRE determina que, após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente, salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de recuperação judicial.

8 Tais hipóteses constam nos artigos 129 e 130 da LRE.

(Adaptado do texto publicado na newsletter do TMA (Turnaround Management Association do Brasil) em janeiro de 2016.)

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