FIDC ou securitizadora? Aspectos relevantes para definição do veículo de securitização no novo contexto normativo

O mercado brasileiro de securitização vem passando por intensas mudanças. Em dezembro de 2020, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) iniciou a Audiência Pública SDM nº 08/20, ainda em curso[1], que, entre outras disposições, propôs uma nova regulamentação aos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC). Em dezembro de 2021, a CVM editou a Resolução nº 60, que consolidou as normas relativas às securitizadoras registradas na CVM e trouxe inovações aos valores mobiliários de sua emissão. Recentemente, em março deste ano, foi editada a Medida Provisória nº 1.103, que dispôs, no plano legal, sobre as securitizadoras e suas emissões de certificados de recebíveis e outros títulos de securitização, para colocação pública ou privada[2].

Nesse cenário de inovações normativas, a escolha do veículo mais adequado para cada securitização requer uma análise ainda mais detida das características da operação à luz das possibilidades que os FIDC e as securitizadoras oferecem. Para auxiliar nessa análise, apresentamos abaixo considerações sobre alguns dos diversos temas relevantes para esse fim.

Direitos creditórios passíveis de securitização. De acordo com as novas regras, as securitizadoras podem emitir títulos de securitização lastreados em direitos creditórios de qualquer origem[3], não havendo restrições em relação aos setores dos quais tais direitos podem advir[4]. Para os FIDC, contudo, o conceito de direitos creditórios é mais limitado, tanto na norma atual[5] quanto naquela sob audiência pública[6], restringindo-se a direitos originários dos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços. Direitos creditórios originados de outros segmentos, não referidos acima, podem atualmente ser adquiridos pelos FIDC não-padronizados. No entanto, estes estão submetidos a algumas restrições, como o fato de suas cotas somente poderem ser distribuídas a investidores profissionais, nos termos do artigo 4º da Instrução CVM nº 444/06. A norma sob audiência pública extinguiu a figura dos FIDC-NP, possibilitando a aquisição, pelos próprios FIDC, de direitos creditórios não-padronizados. Contudo, nesse caso, e de forma semelhante à regulamentação vigente, as cotas de referidos FIDC somente poderão ser destinadas a investidores profissionais[7]. Essa limitação de público-alvo, pelo menos até que a CVM regule o tema, não existe nas normas aplicáveis às securitizadoras.

Revolvência da carteira. A MP nº 1.103 autorizou a revolvência nas operações realizadas por securitizadoras, independentemente da natureza ou origem do direito creditório securitizado[8]. O tema, porém, é tratado de maneira mais restrita pela Resolução CVM nº 60/21, que, por exemplo, não admite a revolvência em operações de securitização imobiliária[9], e, para as operações de securitização no agronegócio, exige o aditamento do termo de securitização a cada nova aquisição de recebíveis[10]. Desse modo, o assunto provavelmente será oportunamente revisto pela CVM. No caso dos FIDC, embora a norma atual não disponha de forma expressa sobre a revolvência, sua possibilidade é da própria essência do veículo. A lógica de funcionamento dos FIDC permite a aquisição automática de novos direitos creditórios, se assim previsto em seu regulamento, tornando os FIDC bastante adequados também à securitização de direitos creditórios de curto e médio prazos. Embora já admitida, a matéria foi abordada de forma expressa na norma de FIDC em audiência pública[11].

Substituição do “administrador” da estrutura. As novas normas aplicáveis às securitizadoras disciplinaram de forma mais adequada a atividade das securitizadoras, reconhecendo-as não somente como emissoras dos títulos de securitização, mas também como administradoras do patrimônio que lhes serve de lastro. Nas hipóteses previstas nas normas ou no instrumento de emissão, a securitizadora pode ser destituída de suas atividades de administração[12]. No entanto, a implementação da destituição e a assunção da atividade por outra instituição podem, na prática, representar entraves ao pleno exercício de tal direito pelos investidores, já que o patrimônio, ainda que vinculado à emissão, pertence à securitizadora. Nos FIDC, as atividades de administração e gestão são desenvolvidas por prestadores de serviços contratados pelo próprio FIDC. Se for do interesse dos investidores, e desde que observado o disposto no regulamento do FIDC, esses prestadores de serviços podem ser substituídos com relativa facilidade[13].

Responsabilidade quanto aos direitos creditórios. As securitizadoras respondem pela origem e autenticidade dos direitos creditórios vinculados aos certificados de recebíveis por elas emitidos.[14] Semelhante obrigação, porém, não existe para os administradores e demais prestadores de serviço dos FIDC, seja pela norma atual, seja por aquela sob audiência pública. Nesse sentido, as securitizadoras possuem uma responsabilidade mais ampla, em relação ao lastro dos certificados de recebíveis, do que aquela existente no âmbito dos FIDC.

Ambos os veículos, como se nota, apresentam características e oferecem possibilidades que podem ser determinantes à própria viabilidade da operação. Além dos elementos que expusemos acima de forma simplificada, inúmeros outros, como público-alvo, custos com prestadores de serviços e possibilidade de realização de operações com partes relacionadas, por exemplo, devem integrar a análise necessária à definição da estrutura mais adequada para cada caso.

 

[1] Conforme sinalizado ao mercado, a edição pela CVM da norma decorrente da Audiência Pública SDM no 08/20 deve provavelmente ocorrer ainda em 2022.

[2] O prazo para a conversão da MP nº 1.103 em lei se encerra em 13 de julho de 2022.

[3] Artigo 2º, IV, Resolução CVM nº 60/21. A MP nº 1.103 não aborda o tema.

[4] Antes, a securitização, por securitizadoras, de recebíveis que não fossem imobiliários ou do agronegócio era usualmente realizada por meio da emissão de debêntures, o que trazia alguns riscos adicionais à estrutura.

[5] Artigo 2º, I, Instrução CVM nº 356/01.

[6] Artigo 2º, XIII, do Anexo II à minuta de resolução objeto da Audiência Pública SDM nº 08/20.

[7] Artigo 18 do Anexo II à minuta de resolução objeto da Audiência Pública SDM nº 08/20.

[8] Artigo 21, XIII, MP nº 1.103/22. Antes, essa possibilidade existia, no plano infralegal, apenas para as securitizadora do agronegócio, nos termos do artigo 7º, Instrução CVM nº 600/18.

[9] Artigo 3º, Anexo I à Resolução CVM nº 60/21.

[10] Artigo 4º, Anexo II à Resolução CVM nº 60/21.

[11] Artigo 27, VI, Anexo II à minuta de resolução objeto da Audiência Pública SDM nº 08/20.

[12] Artigo 39, Resolução CVM nº 60/21.

[13] Artigo 26, III, Instrução CVM nº 356/01 e artigo 64, II, Anexo I à minuta de resolução objeto da Audiência Pública SDM nº 08/20.

[14] Artigo 20, §4º, MP nº 1.103/22.

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