CVM profere relevante decisão acerca do objeto social

Em sessão de julgamento realizada no dia 19 de setembro de 2023, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) apreciou o Processo Administrativo Sancionador nº 19957.003434/2020-42 (“PAS”). O processo, que foi julgado pelo diretor Otto Eduardo Fonseca de Albuquerque Lobo (“Diretor Relator”), teve sua origem no Processo CVM nº 19957.009854/2019-07 (“Processo Originário”), que surgiu a partir de uma reclamação oferecida à CVM pelo gestor de um acionista (“Reclamante”) da Springer S.A. (“Companhia” ou “Springer”) em face da Companhia.

No Processo Originário, foi alegado pelo Reclamante que a Springer não concedeu direito de recesso aos seus acionistas após ter alterado seu objeto social.  Desta forma, a Companhia estaria infringindo o art. 136 da Lei 6.404/1976 (“Lei das S.A.”), que prevê que a aprovação de mudança do objeto social dá aos acionistas que dela discordem o direito de se retirar da companhia, com o reembolso do valor de suas ações.

Entretanto, a Companhia não realizou qualquer alteração nesse sentido em seu estatuto social. Na verdade, conforme sustenta o Reclamante, a Springer teria, na prática, deixado de desenvolver atividades que pertencessem ao escopo de seu objeto social, após alienar as participações societárias que detinha em diversas sociedades, ficando sua atividade circunscrita, a partir de maio de 2018, à participação na coligada Liess Máquina e Equipamento Ltda. (“Liess”), empresa atuante no ramo de bebidas, segmento estranho ao seu objeto social.

Após certos trâmites, o Processo Originário foi remetido à Superintendência de Relações com Empresas (“SEP”), que apresentou peça acusatória em face da Springer, dando início ao PAS. Na referida acusação, a SEP aduziu, por um lado, (a) que não cabia, no caso, o direito de recesso pleiteado pelo Reclamante, já que não houve reforma estatutária modificando o objeto social da Companhia; e, por outro lado, (b) que os membros do Conselho de Administração da Springer deveriam ser responsabilizados por deixarem de convocar uma assembleia geral extraordinária (“AGE”) para modificar formalmente o objeto social da Companhia, o que seria uma violação ao dever de diligência previsto pelo art. 153 da Lei das S.A.[1].

Neste ponto, cabem algumas considerações a respeito do conceito de “dever de diligência”. Nas palavras de Nelson Eizirik[2], tal dever consiste em um standard, um padrão geral de conduta que se impõe aos administradores de uma companhia, e que consiste em um uma atuação cuidadosa no desempenho de determinada atividade. No mesmo sentido, leciona Modesto Carvalhosa que “O dever de diligência atribuído aos administradores tem o sentido de cuidado ativo, zelo, aplicação aos misteres próprios do exercício da gestão da companhia e também ao seu comando (…)”[3]. Além disso, como se observa nos escritos dos mesmos autores, o dever de diligência de administradores de sociedades anônimas é uma obrigação de meio, e não de resultado, de modo que não se exige que o administrador atinja os objetivos da companhia, mas sim que ele aja com zelo e empregue seus melhores cuidados, adotando as medidas necessárias para se informar, investigar e agir para mitigar possíveis prejuízos à companhia.

Em vista das considerações feitas acima, resta claro que, para se apurar a responsabilidade dos membros do Conselho de Administração da Springer, é fundamental identificar se houve, de fato, uma alteração do objeto social da Companhia, pois, caso contrário, não surgiria o dever dos membros do Conselho de Administração de convocar AGE para fins de adequação do estatuto social. Neste sentido, o Diretor Relator argumenta no voto, em síntese, que:

  • A Springer, a fim de ter maior flexibilidade na condução de seus negócios, possui um objeto social amplo, e o art. 2º de seu estatuto social a autoriza a exercer suas atividades por meio da participação em outras sociedades, de diferentes ramos;
  • Ainda que, após a alienação de suas participações societárias a Springer tenha passado a deter participação societária somente na Liess, verificou-se que tal empresa também possui um objeto social bastante amplo, de modo que as atividades por ela desenvolvidas estariam compreendidas no objeto social da Springer;
  • A Springer detém participação societária na Liess há cerca de 2 décadas, e nenhum acionista apresentou reclamação em face da Companhia por desvio do objetivo social ou buscou convocar uma AGE para retificação estatutária em todo o tempo até ela se tornar a única empresa investida pela Springer – mesmo com o art. 123 da Lei das S.A. autorizando-os a fazer isso; e
  • A alienação, pela Springer, de participações societárias em outras empresas foi uma necessidade decorrente de uma crise econômica vivida pela Companhia e, sendo assim, não havia um intuito de se desviar de seu objeto social.

Diante de tais argumentos, concluiu o Diretor Relator pela absolvição dos membros do Conselho de Administração da Springer, uma vez que a Companhia não passou a desenvolver atividades estranhas ao seu objeto social e, portanto, não surgiu a obrigação dos administradores convocarem AGE para reformar o estatuto.

Ante o exposto, entendemos que a decisão da CVM, além de acertada, dá luz a uma prática bastante relevante no âmbito do direito societário: a escolha de um objeto social amplo, que permita à companhia atuar de diferentes formas – direta ou indireta (ou seja, por meio de participação societária) – em diferentes segmentos econômicos, sem a necessidade de realizar uma reforma estatutária para isso. Aliás, como visto no caso da Springer, a realização de uma escolha desse tipo pode ser essencial para assegurar a sobrevivência da empresa mesmo diante de cenários econômicos desfavoráveis – que não são raros no Brasil -, na medida em que possibilita que uma companhia utilize sua criatividade para recorrer a diferentes meios que a permitam obter lucro.

Assim sendo, é muito importante que, ao redigir ou alterar seu contrato social, os acionistas e/ou administradores da companhia tomem o cuidado de descrever o objeto social de maneira bastante ampla, em termos genéricos, para que a empresa nunca corra o risco de ficar sem margem para atuar em um setor diferente da economia ou para adotar uma nova forma de operar no mercado, haja vista as diversas adversidades que podem se impor.

 

 

[1] É importante notar que o estatuto social da Springer atribui, na alínea “d” de seu art. 16, a competência para convocação de assembleias gerais aos membros de seu Conselho de Administração.

[2] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S.A. Comentada, v. 3. 3ª Edição. Quartier Latin: São Paulo, 2021. p. 125 e 126.

[3] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, v. 3. 6ª Edição. Saraiva: São Paulo, 2014. p 379.

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