A Assembleia Geral Ordinária e Extraordinária da Petrobras (B3: PETR3 e PETR4), realizada 25 de abril de 2024 (“AGOE”), atraiu forte atenção do mercado, devido, sobretudo, à proposta da administração apresentada pelo conselho de administração da companhia no dia 7 de março de 2024, para a remuneração dos acionistas pelo exercício social findo em 2023. Nos termos da referida proposta, a administração determinou (a) a distribuição de dividendos extraordinários equivalentes a R$ 14,2 bilhões, e (b) a retenção, para a reserva de remuneração do capital, do lucro remanescente, no total de cerca de R$ 43,9 bilhões. Tal proposta contou com os votos favoráveis dos conselheiros indicados pelo governo e pelos empregados da própria empresa. Os demais membros do conselho de administração, eleitos pelos acionistas minoritários da companhia, e cujo voto foi vencido, votaram pelo pagamento da totalidade dos dividendos apurados.
Conforme justificativa apresentada pela administração, a decisão de retenção de dividendos foi tomada com vistas à realização de grandes investimentos, em especial para o Programa de Aceleração do Crescimento. Para os investidores, a deliberação do conselho de administração decorreu de interferência política na gestão da empresa, vez que o veto à distribuição dos dividendos extraordinários adveio dos membros indicados pelo governo. Ainda, a reação do mercado à proposta foi percebida logo no dia seguinte ao de sua publicação, quando o valor de mercado da Petrobras decaiu em cerca de R$ 55,3 bilhões, com queda do preço das ações superior a 10% – a terceira maior da história da companhia.
Por todo este contexto de turbulências junto ao mercado, em reunião realizada em 19 de abril, o próprio conselho de administração manifestou-se indicando que eventual deliberação em AGOE pela distribuição dos dividendos extraordinários em até metade do lucro líquido remanescente “não comprometeria a sustentabilidade financeira da companhia”[1]. Assim, a União – detentora da maioria das ações com direito a voto da Petrobras – deliberou na AGOE pela destinação do resultado do exercício social de 2023 em conformidade com o que foi autorizado pela administração, distribuindo 50% dos dividendos extraordinários aos acionistas. Com tal reavaliação em relação à retenção dos lucros, em contraposição ao que havia ocorrido após o dia 7 de março, as ações da companhia subiram mais de 2%, significando um aumento de aproximadamente R$ 12,7 bilhões em valor de mercado.
De todo modo, à parte das questões políticas levantadas, a proposta de retenção de dividendos por meio da reserva sugerida pela administração também carrega relevantes questões de ordem jurídica que merecem ser analisadas.
Do ponto de vista societário, o direcionamento dos lucros para a reserva de remuneração do capital não permitiria a utilização de tais recursos para a realização dos investimentos pretendidos pelo governo. Isto porque, nos termos do art. 56, § 1º do estatuto social da Petrobras[2], a reserva de remuneração do capital “tem como finalidade assegurar recursos para o pagamento de dividendos, juros sobre o capital próprio, ou outra forma de remuneração aos acionistas prevista em lei, suas antecipações, recompras de ações autorizadas por lei, absorção de prejuízos e, como finalidade remanescente, incorporação ao capital social”.
Sendo assim, o aproveitamento de valores retidos em reserva de remuneração do capital para fins de investimento dependeria de reforma no estatuto social da Petrobras, matéria que não compunha a pauta da AGOE. Consequentemente, o mercado mostrou-se incerto com relação à real destinação dos recursos, haja vista não ter sido especificado pela Petrobras quais os investimentos que se pretende fazer com os dividendos não distribuídos.
No mesmo sentido, pela perspectiva do direito público, a influência governamental sobre os conselheiros da Petrobras para que votassem pela retenção dos dividendos da companhia parece similarmente controversa.
De acordo com a Lei nº 13.303/2016 (“Lei das Estatais”), o acionista controlador de sociedade de economia mista deve preservar a independência do conselho de administração no exercício de suas funções[3]. A preocupação da norma é, notadamente, assegurar que tais empresas tenham uma governança menos suscetível a vontades político-partidárias e mais atrelada à eficiência e capacidade técnica, visando ao aumento dos lucros, da distribuição de dividendos, e da capacidade arrecadatória dessas entidades.
De outro lado, a Lei das Estatais também determina que a política de distribuição de dividendos de sociedades de economia mista deve observar o interesse público que justificou sua criação[4]. Deste modo, se o interesse público por trás da fundação da Petrobras for o desenvolvimento da indústria petrolífera brasileira, os membros do conselho de administração da companhia não poderiam simplesmente deixar de alocar recursos para a realização de investimentos nesse sentido.
Assim, nota-se que a questão da remuneração dos acionistas da Petrobras envolve um complexo conflito entre público e privado, que extrapola a esfera exclusivamente jurídica, na medida em que há preocupações de ordem política em jogo também. Trata-se de uma consequência natural do modelo de empresa adotado pela Petrobras: sendo uma sociedade de economia mista, a companhia tem de atender tanto aos interesses de seus investidores no recebimento de dividendos, quanto a interesses públicos difusos, relacionados, em geral, ao avanço e desenvolvimento da economia nacional.
De todo modo, é fundamental, ainda assim, que boas práticas de governança sejam devidamente observadas, o que passa pelo respeito ao estatuto social e pela independência dos administradores na execução de suas atribuições.
[1] https://agencia.petrobras.com.br/w/institucional/petrobras-informa-sobre-manifestacao-do-conselho-de-administracao-sobre-distribuicao-de-dividendos.
[2] Disponível em: https://www.rad.cvm.gov.br/ENET/frmExibirArquivoIPEExterno.aspx?NumeroProtocoloEntrega=1172188.
[3] Art. 14. O acionista controlador da empresa pública e da sociedade de economia mista deverá: (…) II – preservar a independência do Conselho de Administração no exercício de suas funções.
[4] Art. 8º As empresas públicas e as sociedades de economia mista deverão observar, no mínimo, os seguintes requisitos de transparência: (…) V – elaboração de política de distribuição de dividendos, à luz do interesse público que justificou a criação da empresa pública ou da sociedade de economia mista.